O desafio de alimentar uma população mundial em constante crescimento é uma das questões mais prementes do século XXI. Enquanto a agricultura global demonstra uma capacidade notável de aumentar a produção ano após ano, a pergunta crucial permanece: esse aumento é suficiente para satisfazer a demanda crescente e garantir a segurança alimentar para todos?
Nas últimas décadas, testemunhamos avanços tecnológicos e ganhos de produtividade agrícola sem precedentes. No entanto, fatores como o crescimento populacional, mudanças nos padrões de consumo – especialmente o aumento da demanda por proteínas animais –, perdas e desperdícios de alimentos, e os impactos cada vez mais severos das mudanças climáticas e conflitos regionais adicionam camadas de complexidade a esse cenário.
Os dados mais recentes são da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), abrangendo o período de 2010 a 2023, que expõem as tendências da produção agrícola global em comparação com a evolução da oferta e disponibilidade de alimentos per capita. A análise sobre o crescimento na produção de culturas essenciais como cereais, oleaginosas e carnes, em contraponto aos indicadores de oferta de energia alimentar, busca entender se o ritmo da produção está, de fato, alinhado com as necessidades nutricionais de uma população global que ultraou os 8 bilhões de pessoas. A análise deve ser feita não apenas sobre os sucessos do setor agrícola, mas também as disparidades regionais gritantes e os desafios persistentes que ameaçam a segurança alimentar em diversas partes do mundo, pintando um quadro complexo da balança alimentar global na última década.
Nas últimas décadas, o setor agrícola mundial demonstrou uma resiliência e capacidade de expansão notáveis. Dados da FAO indicam que a produção global de culturas primárias experimentou um crescimento robusto, saltando 27% entre 2010 e 2023, culminando em um volume impressionante de 9,9 bilhões de toneladas no último ano registrado. Esse avanço não foi uniforme, mas reflete ganhos significativos em diversas categorias de alimentos essenciais.
Os cereais, a espinha dorsal da alimentação global, continuaram sua trajetória ascendente. A produção combinada de milho, trigo e arroz – que juntos representam mais de 90% de todos os cereais colhidos – viu um aumento de 2% apenas entre 2022 e 2023, adicionando 61 milhões de toneladas ao suprimento mundial. O milho, em particular, foi um motor chave desse crescimento recente. Paralelamente, as culturas açucareiras, lideradas pela cana-de-açúcar (com mais de 2 bilhões de toneladas em 2023), também registraram um aumento expressivo de 122 milhões de tonnes no mesmo período anual.
Outros setores também contribuíram para o quadro geral de crescimento. A produção de raízes e tubérculos, como mandioca e batata, cresceu 2% entre 2022 e 2023. Frutas e vegetais alcançaram 2,1 bilhões de toneladas em 2023, um modesto, mas importante, aumento de 1% sobre o ano anterior. As oleaginosas principais – fruto da palma, soja e colza – somaram 893 milhões de toneladas em 2023, refletindo a crescente demanda por óleos vegetais e ração animal. No setor de proteína animal, a produção das carnes mais consumidas (frango, porco e gado) também se expandiu, atingindo 321 milhões de toneladas em 2023, com a carne de aves consolidando sua posição como a mais produzida globalmente.
Esses números, conforme compilados pela FAOSTAT, pintam um quadro de um setor agrícola que, em termos de volume bruto, tem conseguido expandir sua capacidade produtiva de forma consistente ao longo da última década, respondendo aos sinais de uma demanda global crescente. Contudo, como veremos adiante, o volume total produzido é apenas uma parte da equação da segurança alimentar.
A Outra Face da Moeda: Oferta Alimentar Per Capita e Disparidades
Se por um lado a produção agrícola global mostra um crescimento volumétrico expressivo, a análise da oferta alimentar disponível por pessoa revela uma dinâmica mais complexa e desigual. Os dados das Food Balance Sheets da FAO, que medem a disponibilidade de alimentos para consumo humano após contabilizar outras utilizações (como ração animal, sementes, perdas pós-colheita e usos industriais), indicam que a Oferta de Energia Alimentar (DES - Dietary Energy Supply) per capita global aumentou apenas 5% entre 2010 e 2022, alcançando uma média de 2.985 quilocalorias por pessoa por dia.
Este crescimento modesto na disponibilidade per capita, quando comparado ao aumento de 27% na produção primária no período similar, sublinha uma realidade fundamental: grande parte do aumento da produção foi absorvida pelo crescimento populacional e por outros usos não alimentares diretos. Embora a média global de quase 3.000 kcal/dia sugira, em teoria, uma disponibilidade energética suficiente para atender às necessidades básicas, essa média esconde profundas disparidades regionais e vulnerabilidades.
A análise regional da FAO para 2022 mostra que a Europa e as Américas registram os níveis mais altos de DES, seguidas pela Oceania. A Ásia, por sua vez, apresentou o crescimento mais rápido na disponibilidade calórica entre 2010 e 2022, refletindo o desenvolvimento econômico e mudanças nos padrões alimentares em muitas partes do continente. No entanto, a África permaneceu consistentemente com a menor disponibilidade calórica per capita durante todo o período, evidenciando um desafio persistente de o e disponibilidade de alimentos no continente.
“Além das médias regionais, a situação pode ser ainda mais crítica em nível nacional, especialmente em contextos de crise. Entre 2021 e 2022, por exemplo, países como Haiti, Ucrânia e Iêmen enfrentaram quedas drásticas na disponibilidade calórica, ilustrando como conflitos, instabilidade econômica e eventos climáticos extremos podem reverter rapidamente os ganhos e exacerbar a insegurança alimentar, mesmo em um cenário de produção global crescente.”
A composição da dieta também varia: globalmente, em 2022, as carnes forneceram cerca de 21% da proteína disponível, com destaque para aves, mas essa proporção difere enormemente entre regiões ricas e pobres.
A comparação direta entre o crescimento robusto da produção agrícola e o aumento mais tímido da disponibilidade alimentar per capita expõe o cerne do desafio alimentar global. Enquanto o planeta produziu 27% mais culturas primárias em 2023 do que em 2010, a quantidade de energia alimentar disponível para cada pessoa cresceu apenas 5% até 2022, segundo dados da FAO. Essa diferença evidencia que o aumento populacional e outros usos dos produtos agrícolas (como biocombustíveis e ração animal, esta última ligada ao crescente consumo de carne) estão consumindo a maior parte dos ganhos de produção.
A média global de quase 3.000 kcal diárias por pessoa pode parecer adequada, mas mascara desigualdades alarmantes. Regiões como a África Subsaariana continuam a lutar com níveis de disponibilidade calórica significativamente inferiores à média mundial, enquanto nações desenvolvidas na Europa e Américas desfrutam de excedentes. Essa disparidade não é apenas uma questão de produção insuficiente em certas áreas, mas também reflete problemas profundos de o econômico, infraestrutura logística inadequada, perdas pós-colheita e instabilidade política ou climática que impedem a distribuição equitativa dos alimentos produzidos.
Os dados recentes da FAO também acendem um alerta sobre a vulnerabilidade dos sistemas alimentares. Quedas acentuadas na disponibilidade de alimentos em países como Haiti, Ucrânia e Iêmen entre 2021 e 2022 demonstram como crises localizadas podem ter impactos devastadores, independentemente das tendências globais de produção. A dependência crescente de um número limitado de culturas (milho, trigo, arroz) e a concentração da produção em certas regiões também criam riscos sistêmicos, onde um evento climático extremo ou uma interrupção comercial pode ter repercussões em cascata.
Enfrentar o desafio alimentar global, portanto, exige mais do que simplesmente produzir mais; requer uma abordagem integrada que considere a distribuição justa, a redução de perdas e desperdícios, a promoção de dietas sustentáveis e a resiliência dos sistemas agrícolas frente às crises e às mudanças ambientais.
A análise dos dados da FAO para a última década revela um cenário complexo e multifacetado para a segurança alimentar global. Por um lado, a capacidade de produção agrícola mundial continua a se expandir, um testemunho da inovação e do esforço contínuos no setor. A produção de alimentos essenciais, como cereais e carnes, aumentou significativamente em volume. No entanto, esse crescimento na produção bruta não se traduziu em ganhos proporcionais na disponibilidade de alimentos por pessoa, devido à pressão do crescimento populacional e à crescente demanda para usos não alimentares.
As disparidades regionais persistem e, em alguns casos, podem estar se acentuando. Enquanto algumas partes do mundo desfrutam de abundância, outras, particularmente na África Subsaariana e em nações afetadas por conflitos ou crises climáticas, enfrentam déficits crônicos ou agudos na disponibilidade de alimentos. Isso reforça a ideia de que a segurança alimentar não é apenas uma questão de quantidade produzida globalmente, mas fundamentalmente de o, distribuição equitativa e resiliência dos sistemas locais.
Olhando para o futuro, os desafios são imensos. As mudanças climáticas ameaçam desestabilizar ainda mais a produção agrícola, a degradação ambiental impõe limites à expansão e a necessidade de sistemas alimentares mais sustentáveis torna-se cada vez mais urgente. Aumentar a produção de forma sustentável, reduzir drasticamente as perdas e o desperdício de alimentos (que podem chegar a um terço de tudo o que é produzido), promover dietas mais equilibradas e garantir que os alimentos cheguem a quem precisa são imperativos para evitar um aprofundamento da crise alimentar global. A resposta exigirá um esforço coordenado envolvendo governos, organizações internacionais, o setor privado e a sociedade civil, focado não apenas em produzir mais, mas em produzir e distribuir melhor, de forma mais justa e sustentável para as gerações futuras